Milton / Clara / Minas

Textos Críticos - Músicas

Nada a ver com aquele joguinho, mas vale o que estava escrito no final da última crônica: retomo os velhos textos feitos para um catálogo inédito de música popular há exatos 30 anos. No palco, para o seu aplauso, Milton Nascimento e Clara Nunes.

O mar em Três Pontas

Houve uma vez em Três Pontas um menino que gostava de música. No interior de Minas, como de resto em qualquer lugar durante os anos 50, o rádio levava Luiz Gonzaga, João Gilberto, Caymmi. Não havia mar em Três Pontas, mas até hoje Milton Nascimento acha Caymmi sua grande influência.

De que poções mágicas é feito um mito? No caso do mito Milton, o fato explica-se por sua voz corretamente colocada, pelo timbre belíssimo, pelo tom profundamente pessoal de suas interpretações. Claro e cristalino, seu canto deu nova dimensão e dignidade à toada, dentro de uma linha de impressionante coesão, refletindo um clima comovente, muito próximo ao fascínio imantado das minas & morros gerais, onde a vida é travessia sobrepujando o sonho.

Na verdade, o mito é formado pelo que existe de invenção em cada um de nós, em saber transformar a tradição de acordo com o aqui e o agora, abrindo novos caminhos. No fundo, Milton não foi influenciado por ninguém. Nem mesmo por Caymmi. Três Pontas é o seu próprio mar, condimentado por ancestrais raízes africanas. E seu merecido sucesso resulta do fato de trilhar, solitário, um rico e inexplorado filão, demonstrando talento e criatividade. De quebra, ele é, fácil-fácil, umas melhores vozes surgidas em toda a história da MPB.

Ylu ayê, Ylu ayê, ó Clara!

Visivelmente emocionado, Charles Aznavour sobe ao palco e entrega uma rosa à jovem cantora. É fevereiro de 74, dias antes de sua Portela entrar triunfalmente na Avenida, espetáculo que ela não perde por nada deste mundo. É fevereiro, e logo ela irá desfilar junto com sua Escola. Mas estamos em Cannes, no Midem, diante dos donos do mercado internacional de discos e edições musicais.

Na verdade, o gesto de Aznavour foi até tímido diante da excelente performance da mineira Clara Nunes nesta noite. Basta dizer que a programação previa uma única música (“Tristeza pé no chão”), mas os aplausos exigiram mais duas: ”Ylu ayê” e “Ê baiana”. O sucesso não pára aí: seu elepê “Brasília” fora lançado em toda a França, e Clara acabara de gravar um tape para a TV Europa-1. Em março, de volta a Paris, temporada de 15 dias no Teatro Bobino.

Do início em Paraopeba à consagração em Paris, e de Paris à Suécia – onde, após um show de tv, acabou estrela do espetáculo, dando autógrafos nas ruas de Estocolmo – houve longa trajetória que, para ser trilhada, requereu esforço & talento. Hoje, Clara Nunes é nossa grande cantora de cunho popular, com características acentuadamente brasileiras, o que explica o sucesso de sua faceta internacional: quer no exotismo dos rendões brancos de seus trajes, quer na marcação contagiante dos sambões que explodem, alto e bom som, através de sua voz privilegiada.

 


RW - 19.09.2004

Ronaldo Werneck