O cangaceiro Glauber:
“não bulir com baiano”

Textos Críticos - Cinema

“Sou um artista. Não me exijam coerência”, disse um dia Glauber Rocha. Relendo ao acaso o livro “Glauber Rocha – Cartas ao Mundo”, organizado por Ivana Bentes (Companhia das Letras, 1997), vejo que marquei várias “tiradas” do cineasta baiano entre sua correspondência do início dos anos 1960, principalmente naquelas cartas dirigidas ao amigo e também cineasta Paulo Cezar Saraceni. Os trechos marcados, vejo agora, são por si só uma resposta à c...g...da que recentemente o cômico (?) Marcelo Madureira disse em público sobre Glauber. Literalmente: “Glauber é uma merda”. Não soube de alguém que tenha rido do Glauber. Mas, e da merda do Madureira?

Dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber, disse que se o filho fosse vivo ele (Madureira) não teria coragem de dizer aquilo. Glauber para Saraceni, 1961: “Estou em luta com muita gente. Vou terminar dando tiro no Rio e em São Paulo. Você sabe que tenho sangue de cangaceiro”. E, em 1963: “Gustavo (o cineasta Gustavo Dahl) me escreveu sobre o Cahiers (um artigo da revista francesa Cahiers du Cinéma, que elogiava Glauber e Saraceni) e isto é ótimo. Justamente eu e você que Ely (o crítico Ely Azeredo) esculhambou. Com que cara ele vai ficar? Aquilo é um pobre-diabo; já disse a ele uma vez que se bulisse comigo eu ia dar porrada. Quando chegar ao Rio vou quebrar os óculos dele na vista de todo mundo, pra desmoralizar de vez e ele aprender a não bulir com baiano”.

Mas “o cangaceiro Glauber” era na verdade um ser sensível, que “pensava cinema” mesmo nas ocasiões mais inusitadas. Por email, e a pedidos (não me lembrava mais exatamente da história), meu amigo Saraceni me (re)conta o inacreditável episódio ocorrido quando da morte do pai de Glauber: “Caro Ronaldo, lá vai a história do pai do Glauber, que se chamava Adamastor. Morreu numa noite no Arpoador, em Ipanema, onde moravam. Glauber me chamou, às duas da madrugada. Lá fui eu para casa dele. Encontrei Dona Lúcia muito nervosa, me pedindo para convencer o Glauber a deixar que retirassem o corpo do apartamento, pois os vizinhos estavam reclamando. Glauber expulsou todos do quarto e, ficando só comigo e o cadáver do Adamastor, me pediu para contar o roteiro que eu tinha escrito sobre a Coluna Prestes, porque era a grande frustração de seu pai por não poder seguir com a Coluna, pois foi logo preso. Eu contei para Glauber e o cadáver do Adamastor meu roteiro. Glauber chorava e vibrava com o roteiro. Só quando eu acabei ele deixou que levassem o corpo do Adamastor”. Corte rápido.

Para (pára?) essa história do menino Madureira, metendo a merda da caceta no Glauber. Repercussão via jornal, e fico no Globo, pra não ir muito longe. Deus & o Diabo, muita gente a protestar. A Terra em Transe: sessão de desagravo, declarações de amigos de Glauber, Saraceni inclusive, e de colegas-cronistas, defendendo (discretamente) a “bostura” Madureira (que não chorou de dor, mas devia). Tudo é relativo e o (mal)dito pelo cu(su)jo do Madureira deveria era reverberar naquele “fala sério”, o bordão boboca de seu confrade Bussunda – o que, falando sério, já foi. Mas o humor dos cacetóides é mesmo rasteiro e pra lá de debilóide, coisa de meninos de primário, babacas & boçais. Ri quem não tem mais remédio nesse (neste?) idiotal planeta. “Você permanecerá pelo que fizer, criar”, disse certa vez Glauber para Saraceni, como se caceteando o caceta. A relação entre os dois cineastas é, aliás, um dos temas do belo e imperdível documentário “A Etnografia da Amizade”, de Ricardo Miranda. Na seqüência, a mesma morte que abate e o aceno para a “coerência revolucionária” em carta de Glauber para Saraceni, 1962.

“A morte de Miguel Torres (ator e roteirista, morto em acidente de jipe durante filmagens no Nordeste) me abalou muito, logo depois da morte de Mário Faustino (poeta, morto em acidente aéreo nos Andes)... subitamente vi um negócio terrível, que me apavora tanto, que é a morte... tenho a impressão de que a solidão humana só não é absoluta porque você tem irmãos em determinados momentos da história como os quais se comunica – lendo poetas mortos ou falando com amigos. A morte é inevitável, a vida não tem o menor sentido enquanto vazio, renúncia, recusa, humildade: você é na medida em que você está em relação com o mundo e faz. Importa apenas o que você fizer – você permanecerá pelo que você fizer, criar. Eis a vantagem de ser artista... o verdadeiro artista é um ser revolucionário; um ser em oposição, em luta consigo mesmo e com o seu tempo.

“Escrevo pedindo que você nunca se perca no seu caminho, embora ele seja tortuoso, duro de ser seguido. Já lhe disse mais de uma vez que você é um homem à margem e seria muito difícil você marchar com a história do nosso cinema, porque você vai na frente, assim como Humberto Mauro vai atrás e Nelson (Pereira dos Santos) vai conosco. Sobre isto, sobre Mauro, Nelson e você, estou fazendo um artigo para Sadoul (o crítico francês e historiador do cinema Georges Sadoul) publicar no Lettres Françaises. Tenho agora de escrever muito, pois esta crítica está demitida, falida, aniquilada pela burrice. O Brasil é um país morto-vivo, onde poucos homens pensam e fazem”. E, em 1963, também para Saraceni: “O cinema brasileiro é assim: Ganga Bruta evolui para Rio, 40º evolui para Porto das Caixas evolui para Vidas Secas evolui para o próximo filme seu, meu, de outro qualquer, entende? A gente faz grandes filmes porque nós somos cinema, nosso ser é o cinema e temos talento”.

Ainda em 1962, ainda para Saraceni: “Antonioni (Michelangelo Antonioni, o “cineasta da incomunicabilidade) só me interessa enquanto eu sou intelectual de superestrutura. Quando eu faço a redução pro Brasil subdesenvolvido e inculto eu vejo que a Europa é a história feita e nós somos a história a fazer, e nosso tempo é pouco, nosso passado é vergonhoso e temos de agir engajados na história. O Brasil de hoje não tem lugar pro artista romântico e sim para o artista revolucionário. Mas não um revolucionário da arte e sim da própria história. Estética hoje é uma questão política”.

Para o crítico baiano Walter da Silveira, em 1964: “Digo, humildemente, como Antonioni: não tenho mais pudores em me dizer um diretor intelectual. É crime ser intelectual em cinema? O músico, o crítico, o poeta, o pintor, o político é intelectual, não? Porque somente o cineasta tem de ser um mecânico e banir a condição de intelectual? Quem não é intelectual faz os filmes ruins, ou todos os grandes realizadores que nós amamos não são intelectuais? Talvez a massa não esteja preparada para o papel histórico que nós, intelectuais, desejamos que ela assuma. Respeitar o público é fazer mau cinema? Respeitar o cinema e sua História, aprender dos grandes mestres e evoluir & revolucionar para o moderno é crime contra o público? Onde começa o cinema e termina o público?”.

Enfim, há controvérsias. Oswald de Andrade disse um dia: “A massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico”. Antonioni sim, Antonioni não: Glauber tinha razão. “Sou um artista. Não me exijam coerência”.


RW - 06.04.2008


Ronaldo Werneck