A ultrapassagem

Textos Críticos - Cinema

Em plena viagem, e em meio aos “livros de”, sou quase atropelado na Libreria del Cinema, em Roma, pelo dvd de “Il Sorpasso”: súbita ultrapassagem. Tudo a ver. Ou a rever. Principalmente agora, após a leitura de um dos contos do ótimo Cybersenzala (Ed. Brasiliense, 2006), de Jair Ferreira dos Santos. Ali, desconfio que meu amigo paranaense andou trocando as bolas ao citar uma das (ultra)passagens, possivelmente a mais famosa, do filme de Dino Risi. Na verdade, o feroz bate-coxa de Bruno (Vittorio Gassman) na cena antológica da dança na boate não é com sua filha Lili (Catherine Spaak), mas com Gianna (Luciana Angelillo), a mulher do Comendador com quem ele mantinha atabalhoadas negociações. Volto assim a Il Sorpasso, não só para – “modestamente” – confirmar minha suspeita, bingo!, como pelo prazer de rever momentos marcantes de um filme que adoro. Um filme que ficou, desde que o vi no velho Cinema do Seu Nelo, na Cataguases do início da década de 1960. E ficou mesmo quando em constante movimento – orquestrado a cada fotograma pelo maestro Gassman, “Aquele que sabe viver”, como o filme seria conhecido no Brasil.

Pelo que sabe viver e por seu regista. Um dos mais prolíficos diretores da commedia all´italiana, ele realizou entre outros os filmes Poveri ma belli, Una vita difficile, Profumo di donna (com um Gassman arrasador no papel do cego, vivido depois por Al Pacino) e Il nuovi mostri. Teve amantes famosas, de Anita Ekberg a Alida Valli. Há treze anos não filma, há trinta e três vive isolado em Roma, há três tornou-se escritor (I miei mostri, Mondadori). Programou morrer no ano 2000. “Estou ganhando quatro anos”, disse em 2004. Mais quatro, até agora. Ele é Dino Risi (Milão, 1916), o roteirista e diretor de Il Sorpasso/Aquele que sabe viver. Pioneiro dos chamados road-movies – na verdade, Il Sorpasso (Milão, 1962) significa “A ultrapassagem” –, este é um dos filmes emblemáticos da explosão da commedia all´italiana naquela década.

Grande sucesso de bilheteria – e desde o início “bafejado pela sorte”, como disse Risi – Il Sorpasso, inspirou, segundo o diretor italiano, até mesmo o mitológico Easy Rider (“Sem destino”, 1969), de Dennis Hopper. Interessante notar que na América o filme de Dino Risi foi intitulado “The Easy Life”. Mais interessante ainda: a expressão “easy rider”, que dá nome ao filme de Hopper (com roteiro de Hopper, Peter Fonda e Terry Southern), pode ser atribuída também ao homem sustentado pela “namorada-que-namora-no-atacado”. Vamos dizer, o proxeneta e sua “prima-piranha”. O personagem Bruno Cortoni, vivido – e como! – por Vittorio Gassman, não chega a tanto. Mas derrapa(“modestamente”, é claro!) em sinuosas curvas femininas nas suas sucessivas e incorretíssimas ultrapassagens filme afora. Numa delas, como agora, minha atenção é cortada abruptamente pela capa do dvd – a imagem de Gassman ao volante de seu Lancia conversível, Trintignant a tiracolo, quase me atropelando na Libreria del Cinema, em pleno Trastevere.

Il Sorpasso é Vittorio Gassman (Gênova, 1922; Roma, 2000) em seu esplendor. É o jovem talento de Jean-Louis Trintignant. É o sacadíssimo roteiro de Ettore Scola, Ruggero Maccari e do próprio Risi. É o brilho dos diálogos, também escritos por Scola. É a trilha sonora de Riz Ortolani, com direito a “Quando, quando, quando” na voz de Emílio Pericoli. A “St. Tropez Twist”, “Don’t Play that song (You Lied)” e “Per un attimo”, tudo com Peppino di Capri. A “Vechio Frak” de e com Domenico Modugno. E a “Pinne Fucili Occhiali” e “Guarda come Dondolo”, as duas canções da dupla Rossi-Vianello, na voz de Edoardo Vianello. Principalmente a última, que marca o ritmo saltitante daquela Itália que se industrializava, tutti quanti se retorcendo ao som-twist dos anos 1960. É também muito da beleza então adolescente de Catherine Spaak, a valer mais que um parágrafo.

Em 1965, durante o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, eu e meu saudoso amigo, o cineasta baiano Olney São Paulo, fumávamos no foyer do Cine Bruni-Copacabana quando vimos ganhar literalmente todo o mar da “locação” uma jovem de longos cabelos negros, pele dourada e belíssimo porte, que adentrou a sala com seu mover sinuoso e a autoridade de um transatlântico. Do casco ao portaló, do verniz dos sapatos ao frufu do vestido, ela era toda uma viagem em vermelho. Nunca mais me esqueci dessa imagem de Catherine Spaak assim, vivaz e carmesim. E tão perto passou que eu e Olney sentimos a sua, vamos dizer, fragância – esse aroma a recender de cada poro e que só emana de animais magníficos e em toda a sua plenitude. Entramos para a sessão e Catherine sentou-se na fileira à nossa frente, o que me deixou particularmente perturbado, pois não sabia se adivinhava o esplendor da nuca por detrás de seus cabelos ou se me concentrava nas imagens de “Simão do Deserto”, o filme de Luis Buñuel que estava sendo projetado.

Na fileira de trás, a mexicana Silvia Pinal, protagonista desse e de outros filmes de Buñuel, cuja imagem eu via agora na tela, tentava explicar num “mexicanenglish” a Lucynna Winnicka, a “Madre Joana dos Anjos” (Matka Joanna od Anioláw, Polônia, 1961) de Jersy Kawalerovicz, o que se passava na tela, pois o filme, falado em espanhol e sem legendas, era incompreensível para a bela atriz polonesa. Lá pelas tantas, la Pinal – que me pareceu não gostar muito do filme que protagonizara – saiu-se com esse arroubo inesperado: “Buñuel hoje não é mais o mesmo. Você precisa ver a beleza dos filmes realizados pelos jovens cineastas mexicanos!”. Virei pro Olney e sorrimos, meio espantados com a tolice da falastrã.

Até hoje, lá se vão mais de 40 anos, não consegui saber desses jovens cineastas mexicanos e de seus filmes maravilhosos. Silvia Pinal perturbou toda a sessão, com suas explicações desnecessárias (imagem não carece de palavreado) e suas traduções capengas. A voz de la Pinal vinha direto aos nossos ouvidos. Os cabelos de la Spaak, à frente, a encobrir a nuca insondável. Na tela, Buñuel a apresentar uma Silvia travestida de colegial, nada a ver com a voz irritante que me chegava ao fundo. Sons e imagens em conflito: “Simão do Deserto” é para mim, até hoje, o mais impenetrável dos filmes de Luis Buñuel. Pudera.

Fui então “ultrapassado”, por Catherine Spaak, uma bela macchina ao vivo e em vermelho. Mas voltemos a Il Sorpasso, antes que acabe meu espaço. Spaak à parte, o filme é principalmente aquele que sabe viver, o folgazão Bruno Cortono (o vulcão Gassman, muito “gás/man”), ao volante de um turbinado Lancia Aurelia Spyder easy rider entre as estradas de Roma e da Toscana. A seu lado, o jovem carona-forçado, o mais que tímido estudante Roberto Mariani (Trintignant, retraído e cativo). No painel, um lance hilário: uma pequena foto de uma sorridente Brigitte Bardot com a legenda: “Seja prudente, eu te espero em casa.” Gassman mostra a foto e fala: “Bela ragazza, hein!”. Como se dissesse, ao ritmo da música, “olha como balanço”. Rapaz, guarda come dondolo. Na próxima coluna, o próprio Dino Risi conta como encontrou em Vittorio Gassman o seu personagem perfeito. Vejo Gassman a viver: “Ragazzo, olha como ultrapasso”.


RW - 02.03.2008

 


Ronaldo Werneck