O PODER DAS BICICLETAS

Textos Críticos - Artes Plásticas 

 

Inesperados são os perigos deste mundo. Benjamin Silva que o diga, melhor, que os pinte. Há três anos, o artista plástico caminhava pelas ruas de Copacabana quando foi atropelado por uma inocente bicicleta. O trauma de uma clavícula quebrada bastou para que Benjamin passasse a temer as "bicicletais" figuras como se feras fossem. E, feras sendo, não as pintou como se fauve fosse, mas sim com as nuances de um expressionismo construtivista que marca sua fase atual.

Autodidata, Benjamin Silva chegou ao Rio em 1948, vindo do "Ceará via Acre". De um paisagismo urbano nos anos 50, depois acrescido de figuras, seu trabalho passou a um abstrato-expressionismo até 1964, quando mudam os destinos do país e sua forma de expressão, agora na linha do realismo fantástico, com fortes conotações sociais. Na década de 80, sua obra é invadida pelas cidades, que explodem em seus quadros nas cores de um expressionismo construtivista.

Se a fase abstrata surgiu em Paris, onde Benjamin morou três anos aproveitando o Prêmio Viagem do Salão Nacional de Arte Moderna, ganho em 1959 – e perdurou no Brasil durante alguns anos até o período político-participante via realismo fantástico –, com o expressionismo construtivista adotado pelo artista no início dos anos 80 torna-se extremamente impactante a presença da megalópole em sua obra.

A princípio, o elemento humano não interfere nas megalópoles de Benjamin Silva, mas já a partir de 1987 as figuras começam a sair da sombra, surgindo de maneira mais efetiva, participando como colunas integradas na estrutura global dos trabalhos, como se sustentassem a composição do quadro e a própria megalópole.

A poluição visual, a parafernália dos outdoors, os luminosos lambuzando de cores indecisas essas noites-quase-dia que se refletem no espelho molhado do asfalto. Nesses trabalhos recentes do artista encontramos por inteiros suas megalópoles, agora pontilhadas pela interferência de figuras propositadamente em desequilíbrio quanto a sua suposta colocação clássica e seu ponto áureo.

Benjamin Silva deixa que saltem de seu suporte as trabéculas que funcionam como ponto de partida de sua pintura, quase como se quisesse ressaltar com esse artifício o traçado da estrutura primeira de seu trabalho, como se quisesse trazer para o primeiro plano o jogo vertical/horizontal desses traços que aprisionam, como grades que prendem ameaçadoramente os transeuntes, os operários em construção, os súbitos furgões, os automóveis sem destino e, sempre em macro, as bicicletas, as temíveis bicicletas de seu cotidiano.

O que fascina no artista, em qualquer artista, é seu poder de transformar o cotidiano-mundo, de impregnar com sua "textura" pessoal a estrutura da obra. Qualquer que seja sua linguagem – tinta, palavra, melodia – cabe ao verdadeiro artista deixar sua marca, sua patente, entranhada nas tramas de seu trabalho. Uma olhada a vol-d'oiseau num quadro como "Paisagem Vertical I", que se encontra nesta mostra, exemplifica de forma perfeita essa identidade do artista Benjamin Silva, sua particular leitura, estilo, enfoque, que nome tenha, em função de uma megalópole projetada.

Em perspectiva vertical, a cidade pulsa como se comprimida em sua trabéculas e salta a nossos olhos como num plongée cinematográfico, um mergulho verticalizado onde o pincel-câmera desce vertiginosamente em primeiro plano, para se alçar em ralenti num long-shot nuançado em azul, um céu que esmaece no alto, como se escapasse do suporte. Em macro, em "close", as "bicicletais" figuras – poder que paira e permanece.


CCBB / Mostra Benjamin Silva
07 de outubro a 21 de novembro de 1993

 

Ronaldo Werneck