O DOMADOR DE MISTÉRIOS

Textos Críticos - Artes Plásticas 

 

Roberto Magalhães é um mundo. Um artista que atua na faixa da invenção, soma de curiosidade, talento e pesquisas pessoais à margem da tecnologia. Um artista raro num universo de diluidores, onde não mais se indaga, onde a ciência é aceita tout court. Magalhães é um alquimista deslocado no tempo, assumindo o papel do artista como nas sociedades ancestrais. Domador de mistérios, tranqüilo navegante de todas as técnicas, ele imprime um estilo inconfundível à sua arte. É um inspirado descobridor de caminhos que sedimentou ao longo do tempo vertentes vivas para toda uma geração.

Um barco voador conduz um esqueleto numa viagem tipicamente surrealista. Este desenho a nanquim, visto pela primeira vez em sua exposição inaugural (Galeria Macunaíma, Rio, 1962), acha-se nesta mostra do Centro Cultural Banco do Brasil como um marco histórico na trajetória desse artista que, ao voltar-se para si mesmo, está deliberadamente indo ao encontro do outro. Os fantasmas do inconsciente assomam em seus quadros com humor e medo, fatalmente humanos. Como se Roberto Magalhães soubesse desde sempre que a solidão é intransmissível, mas que é preciso tentar, agora e ainda uma vez. Contendo cerca de 80 obras selecionadas pelo próprio autor entre desenhos e pinturas de suas diversas fases, este evento comemora os 30 anos de atividades artísticas de Roberto Magalhães e é sua mais importante exposição realizada até o momento.

Roberto Magalhães está todo aqui, na criteriosa escolha e no abrangente arco de trabalhos abrigados nesta exposição. Do realismo fantástico dos anos 60 a um profundo mergulho místico-existencial na década de 70, daí à magia das imagens hoje reveladas, o ludismo e a irreverência desses bichos-homens-coisas que povoam seu imaginário. O homem Roberto Magalhães continua apostando no esoterismo, mas hoje o artista está desvinculado dessa fase que marcou profundamente sua trajetória no momento em que ele trouxe para o campo das artes plásticas suas indagações na área místico-filosófica. Mas continua a existir em Roberto Magalhães qualquer coisa de monge-copista, de paciência, de zen.

Essas imagens às avessas, essas faces de ponta-cabeça, essas distorções do real, ou do que se supõe como tal, são como rimas internas, vêm muitos de dentro e já surgem prontas, sem necessidade de depuração. Elas vêm naturalmente, aparições, epifanias que brotam do desconhecido sem passar pelo intelecto. Cabe ao artista eternizá-las através do poderio de seu instrumental. Não é à-toa que Roberto Magalhães não acredita no acaso, mas na inspiração. O que significa não só o processo de tirar essas imagens do inconsciente como também “inspiração” para trabalhá-las em termos plásticos. É como se o artista “visse” esses quadros antes que eles estivessem efetivamente prontos.

Para Magalhães, a expressão plástica resulta da inspiração somada à prática, que lhe permite aplicar a técnica adequada a cada quadro. E no momento de executar a obra é preciso que a inspiração ressurja, que retorne o insight que vai gerar o “clima”, a perfeita escolha e mistura das cores, a tonalidade exata transposta do quadro da memória para o quadro em si mesmo. Como se o que ele chama de “inspiração” participasse das duas faces do processo: do surgimento da imagem no inconsciente e de sua gestação plástica.

Roberto Magalhães é um mundo que pede tranqüilidade. E o artista sabe disso, tem consciência de que a formação e a transformação das imagens dependem de seu tempo interno. O que significa dizer que é preciso esperar com paciência sua eclosão, o momento exato de criar. Suas angústias, seus medos, seus mais íntimos fantasmas desaparecem exatamente pela aparição, quando o artista lhes dá vida, plasmando um sonho plástico. É por isso que o acaso não interfere, ou “não existe”, como ele diz textualmente num desenho onde nos propõe desvendar o enigma.

Sua pintura hoje é uma bem-humorada revisão dos desenhos que fazia na infância. Existe qualquer coisa de propositadamente tosco e primitivo nessas figuras retorcidas, nesses caminhões-carros-casas, nessas caras, nesses narizes fantasmagóricos, ancestrais. Qualquer coisa como se ele estivesse se resguardando das palavras-constatação de Sartre: Ils ont oublié leur propre enfance. Ao recuperar essas imagens, Magalhães parece nos dizer que, como Sartre, também ele não quer esquecer a infância. A óptica do artista agora é outra, mas a temática é a mesma, o retorno em ritmo de catarse. Não propriamente uma volta à infância, mas um continuar que se estende por essas figuras, híbridos de imagem & imaginação.

São poucos os artistas que sabem, como Roberto Magalhães, exatamente o que querem. Mestre de apurada técnica ele seleciona atentamente suas imagens. Os longos anos de prática lhe ensinaram a dar destino preciso a suas idéias, a não tentar mascarar como pintura o que desenho é. Ou vice-versa. Magalhães procura adequar seus materiais comandado pela nitidez das visões que vêm do inconsciente. Detalhista, é com acuidade que configura à tela ou ao papel o que a cada um lhes cabe, procurando não fragmentar o universo plástico que vem por inteiro da memória.

Daí explodem as múltiplas e inventivas navegações do artista pelo nanquim, guache, lápis de cor, aquarela, pastel ou pelo óleo. Cada imagem tem sua expressão própria, como se formasse sua própria textura. Magalhães diz que às vezes sai igual ao que foi pensado, às vezes sai melhor. Mas o que foi pensado está sempre ali, na estruturação dessas imagens. Não por obra do acaso, mas em função da inventividade que brota do próprio fazer e torna plástico e palpável esse mundo de alucinações.


CCBB / Mostra Roberto Magalhães
24 de novembro a 20 de dezembro de 1992

 

Ronaldo Werneck