SOBRE NOITE AMERICANA

Fortuna Crítica

 

Por WJ Solha (poeta, dramaturgo, romancista e ator)

 

1)? Não gosto de religião, mas curti imensamente o papel de Pilatos em três anos de semana santa, num grande espetáculo ao ar livre, em João Pessoa. 

 

2) Tirei do anzol e devolvi ao rio o único peixe que pesquei na vida, em Sorocaba, quando menino, e, no sertão de Pombal-PB, desarmei a espingarda quando estava com minha primeira e última caça na mira, no entanto gosto de tudo que o grande caçador e pescador Hemingway escreveu.

 

3) Sou fechadão e sei que sou tão chato quanto um Quixote atacando o Moulin Rouge, mas

 

4) Pra você ver: li seu livro enquanto minha família, todo o Brasil e grande parte do mundo assistiam à partida dos Estados Unidos e Bélgica, na Copa, e

 

5) Lhe digo que curti muito, mais uma vez, sua poesia, acho que  exatamente como o Monet das ninfeias deve ter curtido as “mariposas” de Degas e Tolouse-Lautrec, que não tinham nada com a pintura dele. Digo isso

 

6) Porque seu duplo livro poderia chamar para si o título de um de seus poemas – Pérolas & Porcos, porcos pela quantidade de versos como muitos dos de Gullar e Affonso Romano, cheios de palavrões; pérolas, porque há muitas preciosidades como estas:

 

O som / brita / a noite / comme si /perfurasse o sono //

quem / explode / esta moto / em meus ouvidos?

(Comme si)

De repente / me calo / e deixo ao galo seu ofício  // tão inesperado / tão súbito / e violento / esse cantar/ tão cantar/ tão nunca mais /  tão auroras / tão sinfonia / de perdas & pardais

(Galo/calo)


E a cada palavra / o poeta cai / num céu escuro //  mais que escuro / dark / mais que dark / drunk

( Dark/drunk )


Pérolas... e porcos, mas outros leitores – menos cheios de frescuras - gostarão, com certeza do que não gosto. Quando, onde, alguma coisa nos satisfez completamente?  Veja os exemplos que dei acima, e olha que gosto imensamente de Gullar  e Affonso Romano de Sant´Ana. Mas não gosto do Paraíso da Divina Comédia, não aplaudo a maioria das peças de Shakespeare, não me agradam em nada algumas esculturas – que me parecem horrorosas - de Miguelângelo e Rodin, nem muitos dos quadros – que me parecem toscos – de Van Gogh, e vejo Mozart como genial, mas autor de várias obras simplesmente burocráticas. Mas, ao contrário do Ariano que diz – brincando ma non tropo – que há dois tipos de pessoas no mundo: as que concordam com ele e as que estão completamente equivocadas, há muito me descobri não ser o dono da verdade. Às vezes, ainda bem, apenas temporariamente. Só fui ver beleza das variações da Chacona da Partita no. 2, de Bach, para violino, quando a ouvi, um dia,  com o humor certo, extremamente contemplativo.  Fico, portanto, me devendo outras leituras do vários poemas desses seus dois livros.


Mas como gostei disto, caramba, que só poderia ter sido escrito por alguém vidrado em imagem, como você, trecho dotado, também, de uma sonoridade e de um final de que só à palavra, mesmo, seria possível:

Click / o olho-lente / flagra /num fragmomento vivo / o flou / o fluir do lascivo / o tempo / por trás /de cada /máscara // chique / o olho mago de marisa /clica /detém / & / detona /emoção / precisa // - fábrica de requintes / o olho câmera /clean / clown /click / enquadra /o avesso /vão /da vida.

(Clean/clown/click)


Só a palavra, realmente, exprime isto:

Sou torto tato

os dedos cegos

(Perfume)


Isto (do poema “A Morte é Bailarina”, dedicado a Bob Fosse), me parece antológico, muito seu, pois rico em referências cinematográficas, como ao “Bye-Bye Brasil” virando Bye-Bye Minas (que é, na verdade, a sua pátria), ao “Por Quem os Sinos Dobram”, que passam a marcha para o “aqui jaz”, que vai direto pro “All That Jazz”, que  termina no Bob Fosse, o homenageado, com a Morte personificada na dança final do filme dele:

Bye bye life / bye minas bye-bye / yes-yes-bye-loneless / bye-bye-meninas / bye-bye happiness / bye-bye / sopro de noite que por trás termina / yes-yes // antes que em dobro o sino dobre/ aqui jaz all that jazz // bye-bye / vida veloz e franzina / fosse / ou não / fosse / a morte bailarina.


“Essa Espanhola de Preto”, que vem a seguir e como se seguisse o poema anterior, é muito bonito.

La muerte / essa espanhola/ de preto é uma variação da criada por Bob Fosse.

Em “Baixo Copa” há outra imagem soberba, bem à sua maneira, oriunda de uma fusão da cantriz Doris Day com “Night and Day”, filme e música, num flagra bem Lautrec, bem absinto de Degas:

Sobre doris / day sim / day by night / só-só sob a solidão / do spot-light.


Curiosidade. Em meu poema longo “Trigal com Corvos” eu digo: as melhores cachoeiras de Foz do Iguaçu ficam no lado argentino mas o espetáculo só do lado brasileiro se goza confirmando – ao que parece –  que  é mais divertido ser  amante do que marido  – seja em verso

ou prosa.

 

Esse meu livro é de 2004 (ed. Palimage, de Viseu, Portugal, ed. Impreell, João Pessoa)  e , sem conhecermos os trabalhos um do outro, eis o que Ronaldo Werneck escreve em “La nuit c´est moi”:

Amava/  tanto / a margem / esquerda / do rio / que / nadava / pela direita /só pra / ver/ o que / amava.


Sem querer, RW me aperfeiçoou.

Há um jogo sutil  de esteja/do popular esteje/e stage neste trecho de “reginex beatrix”:

Uma gata / uma fera / uma pantera / no palco / na cama // esteja / onde / esteja / uma graça / uma garça // uma dama /on the stage.


Para finalizar - porque já mostrei mais do que mostraria um trailer – mais uma belíssima imagem, no “daylight”:

Netuno / expulsa do azul um cisco / um peixe / que pulsa / arisco / & espadana /pleno /de nada/ & alvorada.


Aí está. Os Estados Unidos perderam. Mas eu, mais uma vez, ganhei com a poesia.?


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por Eliana Pauvolid (poeta)

em O Globo, caderno Prosa & Verso

 

"Noite americana  - Doris Day by night", quinto livro de poemas de Ronaldo Werneck, mineiro de Cataguases, não se trata de um estudo, trata-se de vivência, de poemas que brotaram muitas vezes nas mesas da boemia carioca.


No título-poema, homenageia o cinema, tema de "Selva selvaggia" (1976), seu primeiro livro e "Werneck revisita Ronaldo Selvaggia" (2005). Noite americana é o artifício cinematográfico para filmar a noite durante o dia. Doris: DAY, atriz e cantora norte-americana das décadas de 50 e 60, que fez sucesso com estilo sensual e ingênua, ou falsa ingênua. DAY BY NIGHT, um disco dela: Day by day/day by night. Tais desdobramentos da leitura são apenas alguns dos possíveis. Posfácio do autor conta que Doris Day é uma personagem de nome fictício, uma prostituta. Espécie de heroína, dá ao livro ares de epopéia pós-moderna. O fato de não antecipar, deixa-nos buscar as chaves que dão sentidos aos poemas distribuídos pelo livro. O livro traz ainda um fragmento de um poema inédito de Rosário Fusco, como um brinde.


A forma, neste e nos demais livros, traz forte influência de Mallarmé (1842-1898), reflexos concretistas e do movimento poema/processo. Também há poemas com versos em suas seqüências tradicionais lineares, poemas líricos. Permanece, na distribuição de versos pela página, na utilização de tipos gráficos diferentes e de espaços em branco, operando variadas combinações semânticas ou em versos lineares, sua poética, seu estilo. Temas recorrentes neste e nos outros livros do autor são o local onde vive, as pessoas do lugar, o cinema, a música e a história da poesia através de epígrafes, ou citações que constroem uma cartografia dos lugares e afetos e pelo quais passou ou foi atravessado.


Vejamos o poema haikai do xique-xique, no que se refere aos significantes, posto que a distribuição gráfica se perderá na transcrição: "antes/ love na night/ agora/ arrulhos no táxi/ um cão que lambe escuro/ lânguidos latidos." Se o tom barra pesada parece vir à tona em alguns poemas, em outros é abrandado pelo lirismo. De balada de toda parte transcrevemos o trecho: "(...) escreviver tem hoje/ novo quilate / quando outro outubro / de novo bate / o mar/ as ondas / o verde-azul / queria dar-te / pois outro outubro / em mim bate / do tempo a primavera / inda é parte / outubro outro e outro/ outubro/ de novo bate / amar faz parte / e outro outubro / de novo bate (...)".


A obra de Ronaldo Werneck desafia o leitor a buscar os sentidos possíveis de seus poemas bem à moda de Mallarmé que dizia que "um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor".


Ronaldo Werneck